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Publicado no Jornal da Tarde, 17/03/2004

A origem das desigualdades

Ao tratar de problemas atinentes às minorias, o Presidente Lula afirmou na semana passada que as desigualdades existem porque as leis brasileiras sempre foram feitas pelos mais fortes.

Ele está coberto de razão. Ao mesmo tempo, isso anula muitas de suas afirmações de campanha e da sua própria carreira política quando atribuía as iniqüidades internas a fatores externos, em especial ao capital estrangeiro, à banca internacional e ao FMI. Hoje, Lula viaja para atrair capitais de fora, demanda recursos dos bancos multilaterais e renova acordos com o FMI.

Ou seja, o seu diagnóstico atual está certo. O anterior estava errado.

Todos sabem que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. As causas são profundas e se ligam a problemas que vêm de longe - mais internos do que externos. Refiro-me à educação de má qualidade, à falta de acesso à terra, às discriminações sociais e vários outros fatores que são de nossa responsabilidade e não dos estrangeiros.

As desigualdades criadas por esses fatores não têm nada a ver com o FMI, Banco Mundial ou terrorismo internacional. São problemas criados por nós mesmos na feitura de leis injustas e na construção das instituições corporativistas.

Para se chegar a um estado de melhor igualdade, temos de mudar muita coisa do que fizemos. Em um texto elaborado com a habitual lucidez deste grande brasileiro que é Miguel Reale há a seguinte pergunta:

O quê justifica que alunos de famílias abastadas e que freqüentam as mais caras escolas do país no nível secundário tenham de usufruir gratuitamente dos serviços da universidade pública cujos recursos provêm de impostos dos mais pobres? Por quê não fazê-los pagar para, com isso, propiciar oportunidades para os estudantes mais pobres? (Miguel Reale, Brasil: Sociedade Plural, Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cutura, 2002).

Nos Estados Unidos, o país mais rico do mundo, as universidades públicas são pagas e os alunos pobres têm bolsas. Ocorre que, no Brasil esses privilégios estão assegurados na Constituição Federal que, ao que parece, não foi feita por americanos, russos ou japoneses. Foi discutida, aprovada e implantada por brasileiros!

Por quê não promovemos a igualdade em lugar de manter leis que preservam a desigualdade? Por uma razão muito simples. Até hoje, na cunhagem das leis - e aqui Lula tem razão - a pressão dos ricos e incluídos é muito mais forte do que a dos pobres e excluídos. Que pressão podem fazer os desempregados? Quem os representa? Há sindicatos de desempregados? Há sindicatos de trabalhadores informais?

Isso precisa mudar. Pietro Ichino, professor da Universidade de Milão, ensina que os incluídos, que são uma minoria, pertencem à cidadela guarnecida pela proteção de leis perversas e que lhes dão o direito de lutar, com enorme vantagem, contra os que tentam invadir o seu território.

É preciso quebrar esse círculo vicioso. Isso é possível? É. E os caminhos estão se abrindo. Manuel Castells, sociólogo espanhol, demonstra que a informática pode melhorar a qualidade das leis ao facilitar a voz dos excluídos.

Pode parecer estranho, mas não há nada de contraditório nesta proposta. Afinal, uma grande parte dos excluídos já domina as novas tecnologias ao operar com caixas eletrônicos e cartões lotéricos, neste caso, até demais. Nesse campo, os brasileiros têm dado um "show" de repercussão internacional no uso de urnas eletrônicas nas eleições.

Por que não estender isso ao processo de formulação das leis? Está na hora de se descentralizar e ampliar o acesso aos canais de comunicação eletrônica para os políticos poderem sentir o pulso dos excluídos, o que permitiria consultá-los em tempo real.

Não chego à democracia digital porque os plebiscitos de rotina trazem outras distorções. Mas estou convencido que o País ganhará muito se o Congresso Nacional ouvir os injustiçados através de meios modernos e rápidos e, em conseqüência, modernizar as instituições atuais em favor dos excluídos.

Não gosto da expressão, mas este é um caso típico de vontade política. Não estou vendo o governo popular dos dias de hoje muito empenhado na feitura de tais leis. Por que o Ministério da Educação, por exemplo, não enfrenta a questão do ensino pago nas universidades públicas? Será que o PT perdeu o elã social?