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Publicado em O Estado de S. Paulo, 16/03/1999

A culpa é da Justiça do Trabalho?

Em matéria de estatísticas, poucos órgãos públicos exibem tanta transparência quanto a Justiça do Trabalho. O último relatório de atividades das cortes trabalhistas mostra números impressionantes.

As Juntas de Conciliação e Julgamento estão recebendo quase dois milhões de processos novos por ano. A essa espantosa cifra, há que se adicionar quase um milhão de casos residuais que vêem de anos anteriores (Relatório Geral da Justiça do Trabalho, Brasília: TST, 1998).

Tratam-se de números assustadores. A França entrou em pânico quando, há cinco anos, as ações trabalhistas ultrapassaram a marca dos 70 mil casos. Os americanos estão apavorados porque já existem cerca de 75 mil processos de natureza trabalhista na justiça comum. E o Japão está atônito porque as ações trabalhistas bateram a casa dos mil casos. O Brasil tem quase 3 milhões de casos que não param de aumentar.

A tabela abaixo estampa a ferocidade do crescimento das ações trabalhistas na primeira instância. Entre 1986-97, a média anual mais do que dobrou. Para 1999, que promete trazer mais desemprego e mais inflação, só se pode esperar mais reclamações na Justiça do Trabalho.

Média Anual de Processos Recebidos pelas JCJs

Período

1941-45

1946-50

1951-55

1956-60

1961-65

Média

28.996

61.370

98.696

126.201

238.398

1966-70

1971-75

1976-80

1981-85

1986-90

1991-95

1996-97

443.822

370.587

549.557

756.111

986.680

1.600.274

1.961.316

Os 4.434 juizes das Juntas de Conciliação e Julgamento realizam cerca de 225 mil sessões e solucionam quase dois milhões de conflitos por ano!

Em 45% dos casos, o impasse se resolve na primeira audiência, por conciliação; e 55% entram na longa rota de julgamento, muitos dos quais vão aos TRTs e TST.

Os 463 juizes dos Tribunais Regionais do Trabalho estão recebendo mais de 360 mil novos processos todos os anos. Eles realizam cerca de 4.800 sessões e julgam mais de 411 mil ações. Ainda assim, sobra um resíduo de 230 mil processos para o ano seguinte.

O Tribunal Superior do Trabalho recebe mais de 90 mil processos e, os seus 27 ministros, em 364 sessões anuais, solucionam cerca de 88 mil casos.

é difícil encontrar apoio para a tese de que os juizes e funcionários das Juntas e Tribunais trabalham pouco. Nos Tribunais Regionais, julgam-se 85 processos por sessão, em média. No TRT de Campinas são 121; em São Paulo, 124; e no Paraná, 130, o que dá uma média de 30 processos por hora ou um a cada dois minutos!

Será que toda essa trabalheira é realmente necessária num mundo em que as relações de trabalho se transformam a cada dia e quando se tornaram imprescindíveis a cooperação entre empregados e empregadores e a agilidade na resolução de impasses? Em outras palavras, será que o sistema brasileiro atual é a melhor maneira para resolver os conflitos trabalhistas?

O Brasil é o campeão mundial em matéria de leis trabalhistas - promulgadas e violadas. Aos juizes são apresentadas anualmente montanhas de ações, quase todas iguais e a maioria demandando coisas triviais – tanto que quase a metade se resolve por conciliação na primeira instância. Mas por força da lei que aí está, é da sua responsabilidade dar início à dolorosa via-crucis das audiências e carregar esse fardo até o fim. A culpa não é dos juizes. Não são eles que geram os conflitos ou que entopem os tribunais de processos.

Em lugar de aumentar o número de juizes, o Brasil precisa reduzir o número de conflitos. O problema central não está da Justiça do Trabalho e sim na Constituição Federal e na CLT. Esses institutos são instigadores de desavenças e ações trabalhistas. Eles não deixam brechas para as partes acertarem o que pretendem e resolverem por sua conta os desentendimentos corriqueiros que ocorrem nos ambientes de trabalho.

Se o Brasil decidir re-escrever os artigos 7º e 114 da Constituição Federal e várias partes da CLT, no sentido de abrir espaço para a negociação direta entre as partes, deixando a elas definirem os sistemas de resolução de seus conflitos (procedimentos reclamatórios, auto-composição, mediação, arbitragem, etc.), como fazem as nações mais avançadas do mundo, aí sim, pode-se e deve-se pensar na reformulação da Justiça do Trabalho. Mas mudar a Justiça do Trabalho sem mudar a lei trabalhista será um ato de ingenuidade e insensatez.

Para os autores de projetos de lei e propostas de emendas constitucionais que ora tramitam no Congresso Nacional, seria útil considerar que a decisão a ser tomada é muito mais funda do que simplesmente mexer na Justiça do Trabalho. Esta precisa ser modificada em sua competência e jurisdição, não há dúvida. Mas isso requer a aprovação de um outro sistema de relações do trabalho no Brasil, onde o negociado venha a prevalecer sobre o legislado.

Enquanto isso não ocorrer, só nos resta aceitar a Justiça do Trabalho que aí está e assistir a triste cena diária dos nobres juizes que se dedicam, com denodo, à inglória e penosa tarefa de enxugar gelo.