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Publicado em O Jornal da Tarde,22/10/1997

"Securitizar" a seguridade?

Tenho acompanhado a discussão sobre os planos de saúde à distância. Não porque não me interesse mas porque não me julgo competente. A atuária e previsão de riscos são assuntos para especialistas e isso cai fora do meu campo de trabalho.

Mesmo assim, sinto-me tentado a fazer alguns comentários à respeito do tema. O debate sobre a segurança na saúde tem muito a ver com o da previdência social, o do seguro-desemprego, seguro-acidentes do trabalho e várias outras modalidades de programas da seguridade social.

A tendência das sociedades modernas é forçar uma retração gradual do Estado e uma participação crescente dos cidadãos (e do mercado) na formação das receitas desses programas.

Nada mais lógico em um tempo em que os orçamentos públicos erodiram-se por força do envelhecimento da população, do aumento das doenças dos idosos, do crescimento do desemprego e, enfim, de vários fatores que conspiram contra os recursos arrecadados em bases completamente diferentes da atual.

Todavia, essa resposta não satisfaz os cidadãos que precisam do apoio de tais programas. Por isso, em todo mundo, a reação contra a "mercantilização" da seguridade social se manifesta de maneira violenta.

Na verdade, o tema é acalentado apenas pelos que têm a responsabilidade de casar receitas e despesas ao longo do tempo. O povo, de um modo geral, abomina as mudanças em direção ao mercado. Os eleitores votam contra, e isso ocorre até mesmo com aqueles que entendem bem a lógica do necessário casamento entre arrecadação e dispêndios.

Por que tanta reação? Penso que isso decorre, em grande parte, da natureza do "mercado da seguridade social". Esse é um mercado muito especial e diferente dos mercados de bens e serviços que são adquiridos de forma imediata. Quando os cidadãos vão à quitanda para comprar tomates, por exemplo, a operação depende muito pouco de credibilidade. Ao pagar, o vendedor entrega imediatamente os tomates para o comprador e pronto. Se houver algum problema, a reclamação é instantânea.

No mercado da seguridade, os vendedores prometem entregar a "segurança" aos compradores (auxílio-saúde, desemprego, aposentadoria, etc.) num futuro longínquo, 20 ou 30 anos depois. Aqui, a credibilidade passa a ser um ingrediente crucial. Nenhum comprador entra num negócio desse tipo se não tem confiança no vendedor.

O que acontece no mundo atual é exatamente o oposto. Os cidadãos de quase todos os países perderam a confiança nos sistemas de seguridade social, deixando de associar tais sistemas com segurança e sim, com insegurança. Os que assim pensam não estão errados. Afinal, são inúmeros os exemplos de cálculos atuariais mal feitos, de uso inadequado dos recursos, de má administração dos fundos e outros desvios.

No caso do Brasil, eles foram potencializados pela falta de clareza à respeito da propriedade dos recursos da seguridade social e pela costumeira conduta dos governantes em meter a mão, sem a menor cerimônia, na poupança dos programas sociais (FGTS, FAT, INSS e outros).

As reformas dos sistemas de seguridade social no mundo inteiro vêm cortando benefícios e empurrando uma parte do trabalho para o mercado. Mas, os cidadãos querem certeza de que, no novo sistema, vão poder contar com os programas na hora que precisarem. Isso está difícil. À sua vista, só há exemplos às avessas. A construção da credibilidade, nessas condições, exige ume verdadeira revolução de conceitos.

Como resolver esse dilema? Tudo indica que a credibilidade terá de ser buscada em outras fontes. Uma delas é a governabilidade. Os cidadãos precisam ter certeza de que os marcos regulatórios terão continuidade. As instituições precisam ser fortes a ponto de dar garantias de que os desvios serão prontamente corrigidos. A burocracia governamental tem de recuperar o sadio conceito weberiano de uma administração impessoal, racional e objetiva.

Credibilidade e governabilidade andam juntas - são irmãs gêmeas. Jamais teremos confiança num sistema de seguridade - seja ele para a saúde, acidente, desemprego ou aposentadoria - se não confiamos na sua governabilidade. Os governantes e administradores, sejam quais foram seus partidos ou ideologias, terão de ser submetidos as regras que garantam a aplicação correta e o uso adequado dos recursos da seguridade.

O novo desafio, portanto, é o de "securitizar" a seguridade social, qualquer que seja o modelo. Do contrário, continuremos com o atual sistema de inseguridade social.